A oportunidade de ser ladrão eo ladrão por ideologia
Por Rui Nogueira
Parafraseando o ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça), “soa estranho” que a direção petista ameace processar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pelo que ele disse à revista IstoÉ e que o PT seja um partido tão “seletivo” ao definir o que é acessório e o que é essencial no combate à corrupção. Logo o PT que, até pouco tempo atrás, batia no peito e reivindicava para si como fato a condição de ser o único partido que fazia política ungido pela moral dos conventos de freiras.
No assembleísmo petista, manifestado em uma profusão de reuniões de diretórios e executivas que quase sempre terminam com repolhudos comunicados ao país, ainda não houve espaço para uma análise séria sobre o valerioduto, uma explicação, mínima que seja, sobre a relação mensaleira do PT com a base aliada. Continuamos sem saber quem são os traidores de Lula. Quando muito, o PT repete o refrão que o ministro da Justiça, feito advogado para a circunstância, lhe ensinou, e Lula rapidinho aprendeu: de que caixa dois é coisa natural da política, todo mundo faz, todo mundo tem, é vício petista herdado de esquemas que já serviam a outros partidos. Estranho, ministro, é que esse mesmo PT peça em nota oficial que a Polícia Federal investigue para valer a “lista de Furnas”. É o tipo de incentivo político que mais atrapalha do que ajuda o óbvio trabalho da PF.
A propósito de Furnas, me permitam um parêntese-pergunta: se Lula demitiu meia Furnas quando Roberto Jefferson fez as primeiras acusações do mensalão, quando, portanto, CPIs, polícia ou procuradores tinham em mãos apenas a denúncia de um político, o que o ministro Hélio Costa (Comunicações) está fazendo no governo se o nome dele consta da lista de Furnas em que o PT e o presidente botam tanta fé?
Tentando despistar
Voltando.
Mas, afinal, por que Márcio Thomaz Bastos está equivocado e fazendo apenas jogo de palavras, não havendo nada nem de seletivo nem de estranho na entrevista do ex-presidente? Seletivo estaria sendo FHC se tivesse dito que os casos de caixa dois envolvendo petistas são mais ou menos caixa dois do que os dos políticos do PSDB, PFL, PL, PP, PTB etc. O PT quer rebaixar a discussão, e o ministro da Justiça, que sabe mais que todos os petistas juntos, quer despistar. O ex-presidente está tratando de algo muito mais importante para o debate de hoje, de amanhã, antes, durante e depois da campanha eleitoral.
O Congresso, com seus instrumentos – CPIs e Conselho de Ética –, a Justiça Eleitoral, o Ministério Público, a Receita Federal e as polícias devem combater o caixa dois. Denunciados, descobertos e investigados sujeitam-se às boas, ruins ou frouxas regras de punição. Nenhuma democracia, mesmo as de urnas mais experimentadas, conseguiu extirpá-lo da prática política, mas, evolução dos instrumentos legais à parte, o que uma sociedade pode, à partida, oferecer de melhor para combater o caixa dois é jamais considerar a prática “natural”.
Mas caixa dois não é, nem de longe, o mesmo que assalto planejado ao Estado, que foi do que tratou Fernando Henrique Cardoso na entrevista à revista IstoÉ. Seletivo, neste particular, só comparando os governos democráticos com os dois períodos da história do país em que esse assalto foi pensado com requintes: no governo Collor (1990-1992) e no governo Lula (2003-2006). Isso não aconteceu no governo Sarney (1985-1989), não aconteceu no governo Itamar Franco (1992-1994) e não aconteceu nos dois mandatos de FHC (1995-2002), ainda que todos tenham enfrentado escândalos com administradores públicos envolvidos em corrupção.
O PT, seus dirigentes e o presidente Lula gostam do debate em torno do caixa dois porque se agarram ao que tomam como bóia mínima de salvação: passar ao país a imagem de que os políticos e os partidos são todos iguais. FHC estava falando da corrupção “orgânica”, “sistêmica”, praticada por alguém que prometia “refundar o país”. FHC tratou, sim, de uma singularidade que o ministro da Justiça conhece bem, a de um partido que elege nada menos que o presidente da República de uma das maiores democracias e economias do mundo, faz a maior bancada na Câmara Federal, domina o ministério por inteiro, tem o absoluto controle sobre o aparelho do Estado e, mesmo assim, descarrega toda a culpa pelo mensalão e o valerioduto em Delúbio Soares. Isso é singular e precisa ser selecionado como caso à parte.
Ladrão por ideologia
Objetivamente, nem FHC nem Lula, nenhum tucano candidato a candidato e nenhum presidenciável de qualquer outro partido podem subir ao palanque de 2006 e se apresentar como alguém que garante um governo imune à corrupção. Prometer o impossível é má política, e tratar a corrupção como inevitável é um perigoso flerte com a indiferença. Mas uma coisa os presidenciáveis podem prometer – sem moralismo de nenhuma natureza: não permitir nem o aparelhamento nem o assalto ao Estado. PC Farias, com o beneplácito de Collor, entronizou uma penca de familiares e cupinchas nos mais altos cargos da República. Lula e a cúpula do PT aparelharam o Estado, desprofissionalizaram-no, mudaram regras para facilitar o assalto dos Waldomiros, Delúbios, Silvinhos e Valérios em nome de um sinal igualmente mafioso, como o do PC Farias-Collor, mas ideologicamente mais sofisticado.
Em todas as entrevistas e depoimentos nas CPIs, na PF e no Ministério Público, Delúbio Soares resumiu à quintessência a ideologia na crença de que os fins justificam os meios. PT e Valério içaram a escada que os levou ao topo do poder para praticar o assalto, mas, em nome do partido e do presidente amigo dos pobres, ninguém reconhece que isso é assalto ao Estado. “Eu não peguei nada pra mim”, costumava dizer Delúbio. Comparativamente com o que foi pego para o PT, Delúbio não pegou mesmo nada. FHC não quer discutir o Delúbio e o Silvinho, mas a roubalheira ideológica e a manipulação stalinista capazes de forjar ou esconder provas, acusações e listas. Uma coisa é um governo ter um ladrão que não perde a oportunidade para roubar o Estado. Outra coisa é a cúpula de um governo, eleito para servir ao Estado, ter no comando gente que rouba por ideologia. O primeiro aproveita as brechas e é constrangido ou contido com o constante aparelhamento legal do Estado e a pressão social por mais e mais transparência pública. O partido-ladrão-ideológico desmonta o Estado por dentro para agir, muda regras no Estatuto da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), elimina princípios que tornam as administrações dos fundos de pensão mais transparentes. O corrupto de oportunidade é infinitamente menos perigoso que o líder político que governa corrompendo as instituições.
A mentira sinceraO ministro Antonio Palocci (Fazenda) foi à CPI dos Bingos e disse que o PT pagou uma de suas viagens no jatinho de um empresário amigo, José Roberto Colnaghi, em julho de 2003. O empresário disse que ninguém pagou nada, o PT admitiu que nada pagou. Lula, que tem assessores que podem ajudá-lo, se não for a conter a língua, a, pelo menos, instruí-lo sobre o que dizer, chamou a mentira contada na CPI de “monumento à sinceridade”. O governo Lula é o símbolo de uma nova categoria de “verdade”, a mentira sincera.
É essa “sinceridade” pública a serviço (!) do Estado que FHC quer discutir. E por que ele o faz? Porque Luiz Inácio Lula da Silva está em campanha, os pré-candidatos tucanos não estão, e, por isso, cabe às lideranças tucanas sem cargos públicos executivos se contrapor à propaganda ostensiva e extensiva do presidente da República.
[] Publicado em 6 de fevereiro de 2006