12 março 2006

Leia parte do que não é publicado pela imprensa brasileira...

PRIMEIRA LEITURA — 45


A escola da INTOLERÂNCIA

Fundamental para a compreensão da situação atual no Oriente Médio e do terrorismo, uma coletânea de 58 ensaios sobre o mito da tolerância muçulmana varre ilusões desinformadas e evidencia que o pacifismo islamicamente correto é como a igualdade sob o socialismo: só vale para os fiéis seguidores e só vigora depois da vitória final sobre os refratários

Por Hugo Estenssoro

NOVA YORK – É muito provável que o distinto leitor não tenha sido informado pela imprensa brasileira sobre o ataque perpetrado por palestinos muçulmanos a Taybeh, uma aldeia cristã vizinha a Ramallah, no dia 5 de setembro. Mais de 500 homens incendiaram e saquearam a localidade, queimando uma imagem da Virgem Maria, depois de assassinar uma moça que tinha relações com um cristão, que as autoridades palestinas imediatamente jogaram na cadeia para “proteger”. Se serve de consolo, a maior parte do mundo tampouco foi informada.
Aliás, há um certo tipo de informação que, de alguma maneira, não circula na grande imprensa. Por exemplo, o fato de que desde os acordos de Oslo (1993-1995) o número de cristãos (árabes) da cidade palestina de Belém tenha caído de 60% da população para um terço. Segundo um pesquisador universitário libanês, Habib Malik, 90% dos 10 milhões de cristãos que vivem em países muçulmanos “nunca co-nheceram uma vida livre, digna e em igualdade”. Até sob o nariz das Nações Unidas os muçulmanos de Kosovo perseguem os infiéis.

Cabe perguntar por que os caçadores de injustiças e vociferantes defensores dos direitos humanos nunca mencionam certos casos, nem se indignam, em se tratando do Islã. Porque o problema não se limita aos árabes: o maior país muçulmano, a Indonésia, tolerou nos últimos anos o extermínio de uns 10 mil cristãos no processo de islamificação das Molucas, e outros milhares de vítimas podem ser contados na Nigéria, nos 12 Estados que adotaram a sharia (legislação muçulmana).

Em outros países islâmicos, como o Paquistão, as mortes recentes se contam apenas em dezenas, mas os cristãos (assim como outros não-muçulmanos) são cidadãos de segunda categoria: não podem ser testemunhas contra um muçulmano e são tratados como os antigos “intocáveis”, só dignos de limpar latrinas. Na Arábia Saudita, que encoraja a conversão ao Islã, os convertidos ao cristianismo podem ser punidos com a morte. De fato, essa atitude “assimétrica” muçulmana está aos pouco se espa-lhando em países cristãos e democráticos. Um ministro da União Européia, o italiano Rocco Buttiglione, teve de renunciar por expressar publicamente sua fé cristã, o que seria considerado discriminação escandalosa se Buttiglione fosse muçulmano. Entende-se: é possí-vel divisar mesquitas desde a Catedral de São Pedro, em Roma, mas em Riad é crime até possuir cartões de Natal.

Não há dúvida de que a tolerância ocidental (a cristandade pertence à história) nos honra. Digam o que disserem os inimigos de Ocidente, quando uma imagem da Virgem é queimada em terras muçulmanas não há motins multitudinários e linchamentos nas grandes cidades cristãs, nem a maior potência militar do mundo, os Estados Unidos – único país que pode ser chamado de cristão sem ambigüidades – declara uma guerra santa. De fato, o Ocidente (isto é, basicamente os Estados Unidos) tem se mobilizado nos últimos anos para defen-der muçulmanos em lugares como Kuwait, Bósnia e Ira-que. Mas a tolerância da in-tolerância, como os países europeus estão hoje aprendendo com sangue, tem os seus riscos.

Mais grave é quando a to-lerância passa a ser a quinta-coluna da intolerância, pro-blema clássico das democracias liberais. Quando a grande imprensa mundial maximiza até a mentira os sofrimentos das vítimas oficiais do momento – hoje os palestinos e, por extensão, os árabes e os muçulmanos em geral – e ignora até a fraude as barbaridades que as vítimas possam cometer, com seus inimigos e até entre elas mesmas, o pecado da mídia costuma ser o da vaidade: reconhecer “o outro” e fazer-lhe generosas concessões é o dernier chic de uma suposta superioridade moral. Já a tarefa de definir, destrinchar e explicar os mitos assim criados não é tão frivolamente fácil. Esse o caso do mito do Islã como “a religião da paz”, cuja “tolerância” seria uma caraterística histórica de 14 séculos.

A ESCOLA DE SAID: ao velho mito da tolerância islâmica, o intelectual palestino Edward Said (1935-2003) incorporou com extraordinário sucesso o novo mito da vitimização imperialista. Na foto ao lado, de 3 de julho de 2000, ele atira pedras, na fronteira do Líbano, contra soldados em Israel. Abaixo, dá entrevista em Oviedo, Espanha, em outubro de 2002, depois de receber o prêmio Príncipe de Astúrias por sua “contribuição à paz mundial”

Ninguém duvida que a esmagadora maioria dos muçulmanos seja gente de paz, assim como a quase totalidade dos habitantes do bloco comunista era gente de bem. O que é menos claro para o cidadão comum é que o Islã, como o marxismo, é uma religião bélica, que formalmente declara a guerra ao resto da humanidade. A paz e a tolerância muçulmanas são o equivalente do pacifismo e da igualdade socialistas: só “valerão” depois da vitória total. A dife-rença consiste em que o socialismo promete um futuro, enquanto o islamismo reivindica um passado.

Refutar o grande mito da tolerância islâmica – que justificaria a introdução de princípios muçulmanos nas sociedades ocidentais – requer longos textos eruditos que o cidadão comum não tem tempo nem vontade de ler. Daí a importância do volume compilado por Robert Spencer, The Myth of Islamic Tolerance: How Islamic Law Treats Non-Muslims (O Mito da Tolerância Islâmica: Como a Lei Islâmica Trata os Não-Muçulmanos). Sua leitura pode ser exaustiva para os não-especialistas. Mas, para os que queiram entender a situa-ção atual no Oriente Médio e a questão do terrorismo islâmico, os 58 ensaios do livro fornecem uma chave impecável.
Só a cabal compreensão do conceito de jihad – como, antes, do conceito de “luta de classes” – permite interpretar o panorama internacional atual. Sofistas na imprensa e nas universidades têm conseguido impor a idéia de que a jihad é uma espécie de esforço espiritual e interno para chegar à virtude. Página após página o livro demonstra o contrário (a “jihad superior”, ou espiritual, é apanágio dos místicos sufis, tão lidos no Islã quanto os místicos cristãos no Ocidente). Historicamente, o Islã foi pacífico por apenas 13 anos. A partir de 622 tornou-se uma religião de guerra e conquista. As citações do Corão sobre a paz e a concórdia são quase todas do período inicial. Mas as contradições do Corão são tradicionalmente resolvidas com a doutrina da ab-rogação (os textos mais recentes revogam os mais antigos). O resultado é que o Islã vê o mundo – como os maniqueus, como os marxistas – como uma luta metafísica, cósmica, entre os iluminados do bem e os perversos que se recusam a aceitar a verdade superior. É isso que explica o terrorismo suicida e o entusiasmo que suscita entre os pacatos muçulmanos da rua.
Entusiasmo compartilhado, surpreendentemente, pela esquerda ocidental. O fenômeno é complexo e merece um exame detalhado em rese-nha futura. Mas um dos textos mais bri-lhantes e instrutivos do livro compilado por Spencer é o ensaio introdutório de Ibn Warraq (pseudônimo de um estudioso indiano, apóstata do Islã, que vive e publica nos Estados Unidos), sobre as origens históricas do fenômeno. Depois de lembrar o gênero milenar de falar bem de desconhecidos exóticos para sa-tirizar ou criticar a própria sociedade (Tácito, Montaigne), Warraq estabelece e documenta a genealogia moderna do elogio do Islã a expensas do Ocidente. No século 17, protestantes como Pierre Jurieu e Pierre Bayle iniciam o mito da tolerância muçulmana comparada com o fanatismo religioso (católico) europeu. O gênero se populariza com figuras clássicas como Montesquieu (Cartas Persas, 1721), Voltaire e vários de seus contos, Oliver Golds-mith (Cidadão do Mundo, 1762) e muitos outros – posso acrescentar as Cartas Marroquinas (1789), do espanhol José Cadalso. De maior influência intelectual foram as obras de Voltaire (Histoire de Moeurs, 1756) e Gibbon (o primeiro volume de Declínio e Queda do Império Romano é de 1776) que deram credenciais “científicas” ao mito da tolerância muçulmana.

O mito continuaria até nossos tempos, desde a historiografia espanhola republicana (Américo Castro) até os biógrafos populares de Maomé no século 20. É com o desenvolvimento dos estudos especializados que surge a evidência contrária ao mito, sempre tratada com atenciosa discrição, como no caso do grande orientalista Bernard Lewis. A venenosa mistura do mito tradicional com o novo mito da vitimização imperia-lista foi conseguida por Edward Said em seu fraudulento Orientalismo (1978), e é ainda Warraq que se ocupa em demoli-lo de maneira definitiva. A escola saidista é denunciada em outro ensaio-chave do livro, A Jihad e os Catedráticos, de Daniel Pipes.

Um dos fios condutores do livro é o conceito de “dhimmitude” – a exclusão política, religiosa e cívica dos infiéis nas comunidades muçulmanas – desenvolvido pela historiadora Bat Ye’or, que contribui com vários ensaios. Com ele e sua relação com a jihad é que podemos perceber, de maneira transparente e irrefutável, que o odium theologicum do mundo islâmico por Israel é o ressentimento provocado pela vitória, independência e prosperidade daqueles que a ordem divina destina a serem escravos. Hegel explica.